sábado, 10 de outubro de 2009

Flamor

Era uma moça num conjunto azul e rosa de estampas. Estava sentada no banco da praça, quando passou à sua frente um rapaz bonito e perfumado que lhe causou uma sensação de como se ela dissesse: “como ficar impassível diante do belo?”.

Mas não foi isso o que ela disse; foi o que ela sentiu. E o que saiu de sua boca foi apenas o seguinte: “Ai”.

E no entanto não se pode dizer apenas; não, não se pode, porque ali, no “ai”, residira toda ela. Fora um “ai” denso e vibrante, e fora como se a moça se sublimasse em palavra.

Era manhã e domingo; e o dia era um ovo. Ela se encostara à janela: contemplava o momento e achava que tudo era imenso e carecia de cuidados porque poderia se quebrar, poderia tudo se esvair e por isso devia cuidar, o dia era dela. E impressionou-a a grandeza de tudo. E lembrou-se do sítio e de como, lá, as tardes eram suas, mas as manhãs eram de sua mãe e as noites eram do irmão mais novo; mas agora era domingo e o dia era dela e parecia um ovo e por isso devia cuidar. No entanto, não sabia explicar o que sentia, e quando insistia nisso começava a ficar cansada porque era inútil qualquer tentativa. E decidia então ficar estática; e sufocava-se.

A patroa lhe dera folga, e ela poderia aproveitar seu primeiro final de semana — tinha chegado à cidade havia apenas três dias e liberaram-na porque a praça ficava em frente ao prédio. Podia descer; mas não demorasse.

Três dias. Até banho de banheira tomara, no segundo dia, quando os patrões saíram à noite: ao fim do banho, quebrou o vidro com as bolinhas coloridas e perfumadas de dissolver na água; limpou tudo e pegou um frasco cheio, tirando dele duas bolas que jogou no vaso sanitário; deu descarga e colocou o vidro novo no lugar do velho; e extasiou-se. Sim, porque até sua roupa ficara cheirando e também o cabelo ficara cheirando, e foi daí um contínuo respirar-se. Mas a lembrança do pasto não lhe saía do nariz. Mesmo assim, na manhã após o banho, fora uma outra: acordou-se esquiva, andando pelos cantos, inspirando forte como se para sugar todo o perfume que, tinha certeza, devia estar inundando a sala, a cozinha, os quartos, ai meu Deus!

Em verdade, acordara-se afoita, indo rápida ao banheiro: rituais frente ao espelho, puxou o cabelo para cima e prendeu-o no alto— vira a atriz da novela com uns cachos sobre a testa —, os cachos desabando; colocou batom, e seus lábios se lhe afiguraram como uma ferida aberta, e não soube se devia achar triste ou engraçado aquilo de lábios-ferida, mas o vermelho a fascinava: fremia.

Descera até à praça: escolheu um banco, sentou-se, colocou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando uma árvore engraçada que, com seus galhos, era uma pessoa dançando de braços abertos. Olhava a árvore-pessoa e ria dela, quando um rapaz passou e de repente ela deixou de sentir o cheiro de pasto: o moço era muito perfumado; perfumado e bonito. Estava de calça e sem camisa, não pudera ainda ver seu rosto, mas o imaginava belo e belíssimo. Sentiu-se toda atraída e foi quando se deu aquele momento derretido de ela esticando o corpo e gemendo. Abriu a boca e seus olhos diminuíram sofridos, o nariz dilatou-se, as mãos suadas apertaram as pernas, a boca encheu-se d’água e ela levantou-se. Quis dizer que ele era um tudo e ela se diluía em querer. Mas o que disse foi o “ai”; ao que se seguiu, após um curto tempo: “Você é tão bonito!”. E se alguém a ouvisse e visse seu coração, diria que jamais se dissera algo assim tão profundo e sincero.

Andou atrás do rapaz, um andar rápido e absorto. Parou, porque sentira que algo grandioso iria acontecer.

O moço olhou para trás e levantou a mão.

A moça pensou que fosse com ela e sorriu. Já indo levantar a sua mão, também, ensaiou uma corrida, quando um senhor a ultrapassou e foi ter com o rapaz.

Para não perder o gesto e a corrida no ar, procurou algo no chão, encontrou uma flor e abaixou-se para pegá-la. Beijou-a como se fosse a barriga daquele moço.

Permaneceu olhando-o, lenta, e pensou, não com estas palavras, mas com estes sentimentos, que, assim como se embevecia diante de uma flor, de uma montanha, passando tempos a olhar, poderia ficar assim diante do homem. Ele era tão mais bonito, e se movia, e quando se movia, os músculos endureciam. E era lindo.

E ela quis possuir aquela beleza; mas percebeu que não poderia, porque ele seria sempre ele. E ela seria sempre ela.

Desejou então que ele a respirasse, quis evolar-se. Fechou os olhos, para melhor querer se jogar a seus pés e desaparecer e sugá-lo, mas já tinha certeza de que nunca seria feliz, porque nunca o teria, sendo sempre dois. E se o sugasse, ele acabaria.

E foi então quando pensou em ser um açude para tê-lo dentro dela, envolto por ela. Entraria de roupa e esta seria encharcada aos poucos, até ele se molhar. Mergulharia. E ela o envolveria. Mas seriam ele e ela ainda distintos.

Virou-se de olhos ainda fechados. Abriu-os. Resolveu voltar para o prédio.

E naquele instante de passo lento, por um tempo ainda voltando o olhar para trás, decidiu dolorosa que aos domingos pela manhã iria até à praça e procuraria o rapaz ou outros de tamanha beleza. E ficaria embevecida deles. E os quereria por serem tão belos e não os poderia ter, aqueles de belezas suas e tão fugidias.

E quis dizer seu próprio nome duas vezes: “Luzia, Luzia”. E quis mais, mas receou, porque foi estranho falar o nome e se cristalizar à frente, vendo-se tão nítida justo naquele instante em que sentiu que desde então sempre sua vida seria um constante morrer.

E começava já a sua morte.

Mas não disse isso; apenas — apenas? — gemeu longamente: “aaai”. E entre paredes apertou o corrimão, parando num breve frenesi, misto de temor e gozo, porque lhe pareceu numa quase transparência ter ouvido uma notável primeira rachadura na casca do ovo.

E teve medo.

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