sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Casaram-se Numa Quinta-feira

Casaram-se numa quinta-feira. E ao beijá-la — o véu levantado —, veio-lhe à mente, de imediato, a imensa prole que desejava. E por ser imaginação, quase sonho, uma dúzia eram os filhos que o rodeavam, gritando, pulando, acarinhando-lhe as pernas. Beijou a esposa — e deu-se a noite.
Esperara pelo momento muitíssimo, como deveras também se esmerara em se preparar: a melhor loção, o melhor calção folgado de seda, a cueca de algodão. O tônico que tomara durante uma semana, adocicado e ferruginoso. Levava o gosto de metal na boca mas não se importava: era investimento.
Chegara inclusive a se sentir realmente mais forte. Até certos exercícios fizera, como o de interromper a ejaculação quando quisesse — modo de prolongar o prazer até o momento alto e último. Deitado no quarto, na cama de solteiro, via milhares de bichinhos nadando céleres; mas queria milhões e por isso tomava doses duplas do preparado. A esposa era bela e ele a julgava apta para o que queria: uma mãe para os rebentos. Mãe de ventre largo e braços fortes, prendada e bonita.
Passaram-se os nove meses e a filha nasceu. Tinha os olhos e a boca do pai, isso ele logo percebeu e alardeou, desejoso de tomá-la nos braços mas tendo de conter-se. Em outras ocasiões, muitas vezes a carregou, levando-a ao peito, ao ombro, sempre beijando-lhe as faces. Tinha esse costume. E se derretia intenso quando ela respondia com um abraço em seu pescoço. Beijava as mãos da menina, levantando-a, e ela dizia vou voar, vou voar.
Quando ele voltava do trabalho, entrava em casa com presentes, com chocolates. A mãe, que passava o dia nas tarefas domésticas, reclamava porque não era ele que tinha de verificar se a filha escovara os dentes direito. E muito menos era ele quem fazia a vitamina de maçã e banana para conter a diarréia quase diária. Ele resmungava, e dava as costas à mulher, e sorria para a filha, que, após alguns anos, já não brincava tanto com ele quando, cansado e desejoso, voltava para casa após o dia pesado.
Então aconteceu de ele desejar outro filho, porque o entristecia não ter o abraço no pescoço, não ter para quem levar os chocolates no fim da tarde.
Por esses dias, no intervalo para o almoço, ia para uma praça ver umas crianças brincarem. Mas não persistiu no costume, pois uma certa vez, querendo beijar os cabelos de um garotinho que corria contente, provocou um grito de uma mãe que se assustou vendo um homem estranho aproximar-se do filho dela. Ele pediu desculpas, disse que só queria beijá-lo, mas a mãe, aos gritos, ameaçou chamar a polícia caso ele, um tarado sem-vergonha, não saísse dali imediatamente!
Ele saiu. E sentiu-se enfraquecido, sentando-se apenas umas quadras depois, num banco em frente a uma loja. Teve vontade de ir para casa, não retornando ao expediente; mas demorou, porque a esposa não o atraía. E a filha estava namorando um rapaz metido a intelectual, falador de problemas sociais, uma coisa!
Após o nascimento da filha, que se dera num distante domingo — e que distante foi isso —, tentou muitas vezes outros filhos. Penetrava a mulher pensando nas crianças. Nem via o seu rosto. Não lembrava como era seu beijo — ou se alguma vez a beijara após o casamento. Era colocar-se sobre ela, sôfrego, e ejacular, o rosto enfurnado ao lado de sua cabeça.
Talvez o fortificante não fizesse mais efeito. Se bem que realmente não o tomava mais como antes. E, mais exato, nem mais o tomava. O último frasco, que deixara no armário, manchando a fórmica com um halo escuro, fora jogado fora pela filha, que dissera do prazo de validade vencido. Dissera isso. e ele achou que os olhos dela já não eram assim tão parecidos com os seus. E nem a boca, agora empastada de batom fortíssimo.
Uma noite, a esposa tocou o seu peito e perguntou o que estava acontecendo de errado. De errado?, ele perguntou, afastando a mão dela. De errado?, perguntou novamente, jogando-a na cama e deitando-se sobre ela. Abriu-lhe a boca e enfiou nela a língua fedendo a cerveja. Foi violento e rápido. E, saindo de sobre a mulher, que chorava, chamou-a de estéril.
Decidiu retirar-se. Chovia e ele pensou que fosse um bom prenúncio. Apalpou os bolsos da calça, tirou o dinheiro, contou-o e caminhou por algum tempo até uma casa de que já ouvira falar. Durante a caminhada, abrigava-se sob as marquises das construções, deixando-se molhar vez ou outra, oferecendo a nuca para a água que se derramava débil e escorria por sob a gola da camisa, descendo pelas costas. Ela o molhava e ele se sentia revigorado, ou como se talvez escorresse com a água, diluindo-se pela calçada até descer para o meio-fio, fragmentado em meio ao caudal. Já quase se desesperava, quando se deparou com a casa.
Subiu as escadas e escolheu a mulher que lhe pareceu ter os traços melhores. Antes de entrar no quarto, foi a um banheiro no corredor. Lavou o rosto com um sabonete ressecado que estava sobre a pia, penteou os cabelos, lavou a boca, esfregou a língua com o mesmo sabonete ressecado, apertou o cinto da calça — murchando a barriga —, enxugou os cabelos e saiu rumo ao quarto com o rosto pálido. Pediu à moça que apagasse a luz. E na hora de colocar o preservativo, após rasgar o envelope, escondeu-o fingido sob o colchão.
Galopou-a bravio. E quase sem intervalo galopou-a de novo, silencioso. Durante todo o tempo manteve os lábios cerrados. Inchava o rosto e prensava os dentes. Resfolegava. E quando pensou que fosse chorar levantou-se e colocou todas as suas notas na mão da mulher, que, assustada, parecia ter percebido que ele se derramara dentro dela.
Já de pé, arrumando a calça que não tirara por completo — seus olhos ardiam! —, ele voltou-se e tocou o ventre da mulher e disse para ficar calma. Saiu rápido antes que ela pudesse dizer alguma coisa. E ela nem disse, deitada estendida, a fenda aberta e o dinheiro na mão.
Meses depois — ia trabalhar —, ele se postou em frente à casa. Viu a mulher grávida e sorriu, contente do filho que ela carregava. No dia seguinte a ter se deitado com ela, mandara uma caixa com dois enxovais: um rosa, outro azul. E um maço de notas enroladas em uma fita vermelha. Junto com eles, um bilhete onde dizia que não se preocupasse, porque ele cuidaria.
No oitavo mês, procurando-a aflito porque não a vira mais — largara do trabalho e resolvera ir à procura dela antes de ir à casa dormir —, soube que havia sido expulsa porque era uma tola que não dava para mais ninguém e viam que ela recebia dinheiro de um aí mas não repartia porcaria nenhuma e só dava despesas e tinha embuchado e assim não podia ser: Foi Embora! Ele deu um murro na senhora que o atendeu, fazendo resvalar a rosa de plástico que ela trazia no cabelo amarelado.
Saiu da casa e andou durante toda a madrugada e todo o outro dia até ao anoitecer. E entristecido nem foi à festa da filha, que completava dezoito anos naquela noite de chuva agora estiada.
Saiu e se acostumou com o estar na rua. Sentou-se no meio-fio, ficou observando-se em uma poça formada à sua frente. Mirava-se, quando a água em dardos voltou a jogar-se sobre ele, estilhaçando a poça e borrando a sua imagem. Levantou o rosto, apertou os olhos, estremeceu. A sua face doía. E quando pensava em levantar-se, logo desistia.
Deixou-se ficar.

3 comentários:

Luiz Alberto Machado disse...

Parabens pelo excelente blog, maravilha. Indicarei nas minhas páginas, aguarde.
Abração
www.luizalbertomachado.com.br

João Paulo da Silva disse...

oi nilton

obrigado pelo comentário. uma honra.
abraço

Ábia Marpin disse...

Cada vez mais preciso, mais instigante, mais dono do leitor...
Maravilhoso!