sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Casaram-se Numa Quinta-feira

Casaram-se numa quinta-feira. E ao beijá-la — o véu levantado —, veio-lhe à mente, de imediato, a imensa prole que desejava. E por ser imaginação, quase sonho, uma dúzia eram os filhos que o rodeavam, gritando, pulando, acarinhando-lhe as pernas. Beijou a esposa — e deu-se a noite.
Esperara pelo momento muitíssimo, como deveras também se esmerara em se preparar: a melhor loção, o melhor calção folgado de seda, a cueca de algodão. O tônico que tomara durante uma semana, adocicado e ferruginoso. Levava o gosto de metal na boca mas não se importava: era investimento.
Chegara inclusive a se sentir realmente mais forte. Até certos exercícios fizera, como o de interromper a ejaculação quando quisesse — modo de prolongar o prazer até o momento alto e último. Deitado no quarto, na cama de solteiro, via milhares de bichinhos nadando céleres; mas queria milhões e por isso tomava doses duplas do preparado. A esposa era bela e ele a julgava apta para o que queria: uma mãe para os rebentos. Mãe de ventre largo e braços fortes, prendada e bonita.
Passaram-se os nove meses e a filha nasceu. Tinha os olhos e a boca do pai, isso ele logo percebeu e alardeou, desejoso de tomá-la nos braços mas tendo de conter-se. Em outras ocasiões, muitas vezes a carregou, levando-a ao peito, ao ombro, sempre beijando-lhe as faces. Tinha esse costume. E se derretia intenso quando ela respondia com um abraço em seu pescoço. Beijava as mãos da menina, levantando-a, e ela dizia vou voar, vou voar.
Quando ele voltava do trabalho, entrava em casa com presentes, com chocolates. A mãe, que passava o dia nas tarefas domésticas, reclamava porque não era ele que tinha de verificar se a filha escovara os dentes direito. E muito menos era ele quem fazia a vitamina de maçã e banana para conter a diarréia quase diária. Ele resmungava, e dava as costas à mulher, e sorria para a filha, que, após alguns anos, já não brincava tanto com ele quando, cansado e desejoso, voltava para casa após o dia pesado.
Então aconteceu de ele desejar outro filho, porque o entristecia não ter o abraço no pescoço, não ter para quem levar os chocolates no fim da tarde.
Por esses dias, no intervalo para o almoço, ia para uma praça ver umas crianças brincarem. Mas não persistiu no costume, pois uma certa vez, querendo beijar os cabelos de um garotinho que corria contente, provocou um grito de uma mãe que se assustou vendo um homem estranho aproximar-se do filho dela. Ele pediu desculpas, disse que só queria beijá-lo, mas a mãe, aos gritos, ameaçou chamar a polícia caso ele, um tarado sem-vergonha, não saísse dali imediatamente!
Ele saiu. E sentiu-se enfraquecido, sentando-se apenas umas quadras depois, num banco em frente a uma loja. Teve vontade de ir para casa, não retornando ao expediente; mas demorou, porque a esposa não o atraía. E a filha estava namorando um rapaz metido a intelectual, falador de problemas sociais, uma coisa!
Após o nascimento da filha, que se dera num distante domingo — e que distante foi isso —, tentou muitas vezes outros filhos. Penetrava a mulher pensando nas crianças. Nem via o seu rosto. Não lembrava como era seu beijo — ou se alguma vez a beijara após o casamento. Era colocar-se sobre ela, sôfrego, e ejacular, o rosto enfurnado ao lado de sua cabeça.
Talvez o fortificante não fizesse mais efeito. Se bem que realmente não o tomava mais como antes. E, mais exato, nem mais o tomava. O último frasco, que deixara no armário, manchando a fórmica com um halo escuro, fora jogado fora pela filha, que dissera do prazo de validade vencido. Dissera isso. e ele achou que os olhos dela já não eram assim tão parecidos com os seus. E nem a boca, agora empastada de batom fortíssimo.
Uma noite, a esposa tocou o seu peito e perguntou o que estava acontecendo de errado. De errado?, ele perguntou, afastando a mão dela. De errado?, perguntou novamente, jogando-a na cama e deitando-se sobre ela. Abriu-lhe a boca e enfiou nela a língua fedendo a cerveja. Foi violento e rápido. E, saindo de sobre a mulher, que chorava, chamou-a de estéril.
Decidiu retirar-se. Chovia e ele pensou que fosse um bom prenúncio. Apalpou os bolsos da calça, tirou o dinheiro, contou-o e caminhou por algum tempo até uma casa de que já ouvira falar. Durante a caminhada, abrigava-se sob as marquises das construções, deixando-se molhar vez ou outra, oferecendo a nuca para a água que se derramava débil e escorria por sob a gola da camisa, descendo pelas costas. Ela o molhava e ele se sentia revigorado, ou como se talvez escorresse com a água, diluindo-se pela calçada até descer para o meio-fio, fragmentado em meio ao caudal. Já quase se desesperava, quando se deparou com a casa.
Subiu as escadas e escolheu a mulher que lhe pareceu ter os traços melhores. Antes de entrar no quarto, foi a um banheiro no corredor. Lavou o rosto com um sabonete ressecado que estava sobre a pia, penteou os cabelos, lavou a boca, esfregou a língua com o mesmo sabonete ressecado, apertou o cinto da calça — murchando a barriga —, enxugou os cabelos e saiu rumo ao quarto com o rosto pálido. Pediu à moça que apagasse a luz. E na hora de colocar o preservativo, após rasgar o envelope, escondeu-o fingido sob o colchão.
Galopou-a bravio. E quase sem intervalo galopou-a de novo, silencioso. Durante todo o tempo manteve os lábios cerrados. Inchava o rosto e prensava os dentes. Resfolegava. E quando pensou que fosse chorar levantou-se e colocou todas as suas notas na mão da mulher, que, assustada, parecia ter percebido que ele se derramara dentro dela.
Já de pé, arrumando a calça que não tirara por completo — seus olhos ardiam! —, ele voltou-se e tocou o ventre da mulher e disse para ficar calma. Saiu rápido antes que ela pudesse dizer alguma coisa. E ela nem disse, deitada estendida, a fenda aberta e o dinheiro na mão.
Meses depois — ia trabalhar —, ele se postou em frente à casa. Viu a mulher grávida e sorriu, contente do filho que ela carregava. No dia seguinte a ter se deitado com ela, mandara uma caixa com dois enxovais: um rosa, outro azul. E um maço de notas enroladas em uma fita vermelha. Junto com eles, um bilhete onde dizia que não se preocupasse, porque ele cuidaria.
No oitavo mês, procurando-a aflito porque não a vira mais — largara do trabalho e resolvera ir à procura dela antes de ir à casa dormir —, soube que havia sido expulsa porque era uma tola que não dava para mais ninguém e viam que ela recebia dinheiro de um aí mas não repartia porcaria nenhuma e só dava despesas e tinha embuchado e assim não podia ser: Foi Embora! Ele deu um murro na senhora que o atendeu, fazendo resvalar a rosa de plástico que ela trazia no cabelo amarelado.
Saiu da casa e andou durante toda a madrugada e todo o outro dia até ao anoitecer. E entristecido nem foi à festa da filha, que completava dezoito anos naquela noite de chuva agora estiada.
Saiu e se acostumou com o estar na rua. Sentou-se no meio-fio, ficou observando-se em uma poça formada à sua frente. Mirava-se, quando a água em dardos voltou a jogar-se sobre ele, estilhaçando a poça e borrando a sua imagem. Levantou o rosto, apertou os olhos, estremeceu. A sua face doía. E quando pensava em levantar-se, logo desistia.
Deixou-se ficar.

sábado, 10 de outubro de 2009

Flamor

Era uma moça num conjunto azul e rosa de estampas. Estava sentada no banco da praça, quando passou à sua frente um rapaz bonito e perfumado que lhe causou uma sensação de como se ela dissesse: “como ficar impassível diante do belo?”.

Mas não foi isso o que ela disse; foi o que ela sentiu. E o que saiu de sua boca foi apenas o seguinte: “Ai”.

E no entanto não se pode dizer apenas; não, não se pode, porque ali, no “ai”, residira toda ela. Fora um “ai” denso e vibrante, e fora como se a moça se sublimasse em palavra.

Era manhã e domingo; e o dia era um ovo. Ela se encostara à janela: contemplava o momento e achava que tudo era imenso e carecia de cuidados porque poderia se quebrar, poderia tudo se esvair e por isso devia cuidar, o dia era dela. E impressionou-a a grandeza de tudo. E lembrou-se do sítio e de como, lá, as tardes eram suas, mas as manhãs eram de sua mãe e as noites eram do irmão mais novo; mas agora era domingo e o dia era dela e parecia um ovo e por isso devia cuidar. No entanto, não sabia explicar o que sentia, e quando insistia nisso começava a ficar cansada porque era inútil qualquer tentativa. E decidia então ficar estática; e sufocava-se.

A patroa lhe dera folga, e ela poderia aproveitar seu primeiro final de semana — tinha chegado à cidade havia apenas três dias e liberaram-na porque a praça ficava em frente ao prédio. Podia descer; mas não demorasse.

Três dias. Até banho de banheira tomara, no segundo dia, quando os patrões saíram à noite: ao fim do banho, quebrou o vidro com as bolinhas coloridas e perfumadas de dissolver na água; limpou tudo e pegou um frasco cheio, tirando dele duas bolas que jogou no vaso sanitário; deu descarga e colocou o vidro novo no lugar do velho; e extasiou-se. Sim, porque até sua roupa ficara cheirando e também o cabelo ficara cheirando, e foi daí um contínuo respirar-se. Mas a lembrança do pasto não lhe saía do nariz. Mesmo assim, na manhã após o banho, fora uma outra: acordou-se esquiva, andando pelos cantos, inspirando forte como se para sugar todo o perfume que, tinha certeza, devia estar inundando a sala, a cozinha, os quartos, ai meu Deus!

Em verdade, acordara-se afoita, indo rápida ao banheiro: rituais frente ao espelho, puxou o cabelo para cima e prendeu-o no alto— vira a atriz da novela com uns cachos sobre a testa —, os cachos desabando; colocou batom, e seus lábios se lhe afiguraram como uma ferida aberta, e não soube se devia achar triste ou engraçado aquilo de lábios-ferida, mas o vermelho a fascinava: fremia.

Descera até à praça: escolheu um banco, sentou-se, colocou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando uma árvore engraçada que, com seus galhos, era uma pessoa dançando de braços abertos. Olhava a árvore-pessoa e ria dela, quando um rapaz passou e de repente ela deixou de sentir o cheiro de pasto: o moço era muito perfumado; perfumado e bonito. Estava de calça e sem camisa, não pudera ainda ver seu rosto, mas o imaginava belo e belíssimo. Sentiu-se toda atraída e foi quando se deu aquele momento derretido de ela esticando o corpo e gemendo. Abriu a boca e seus olhos diminuíram sofridos, o nariz dilatou-se, as mãos suadas apertaram as pernas, a boca encheu-se d’água e ela levantou-se. Quis dizer que ele era um tudo e ela se diluía em querer. Mas o que disse foi o “ai”; ao que se seguiu, após um curto tempo: “Você é tão bonito!”. E se alguém a ouvisse e visse seu coração, diria que jamais se dissera algo assim tão profundo e sincero.

Andou atrás do rapaz, um andar rápido e absorto. Parou, porque sentira que algo grandioso iria acontecer.

O moço olhou para trás e levantou a mão.

A moça pensou que fosse com ela e sorriu. Já indo levantar a sua mão, também, ensaiou uma corrida, quando um senhor a ultrapassou e foi ter com o rapaz.

Para não perder o gesto e a corrida no ar, procurou algo no chão, encontrou uma flor e abaixou-se para pegá-la. Beijou-a como se fosse a barriga daquele moço.

Permaneceu olhando-o, lenta, e pensou, não com estas palavras, mas com estes sentimentos, que, assim como se embevecia diante de uma flor, de uma montanha, passando tempos a olhar, poderia ficar assim diante do homem. Ele era tão mais bonito, e se movia, e quando se movia, os músculos endureciam. E era lindo.

E ela quis possuir aquela beleza; mas percebeu que não poderia, porque ele seria sempre ele. E ela seria sempre ela.

Desejou então que ele a respirasse, quis evolar-se. Fechou os olhos, para melhor querer se jogar a seus pés e desaparecer e sugá-lo, mas já tinha certeza de que nunca seria feliz, porque nunca o teria, sendo sempre dois. E se o sugasse, ele acabaria.

E foi então quando pensou em ser um açude para tê-lo dentro dela, envolto por ela. Entraria de roupa e esta seria encharcada aos poucos, até ele se molhar. Mergulharia. E ela o envolveria. Mas seriam ele e ela ainda distintos.

Virou-se de olhos ainda fechados. Abriu-os. Resolveu voltar para o prédio.

E naquele instante de passo lento, por um tempo ainda voltando o olhar para trás, decidiu dolorosa que aos domingos pela manhã iria até à praça e procuraria o rapaz ou outros de tamanha beleza. E ficaria embevecida deles. E os quereria por serem tão belos e não os poderia ter, aqueles de belezas suas e tão fugidias.

E quis dizer seu próprio nome duas vezes: “Luzia, Luzia”. E quis mais, mas receou, porque foi estranho falar o nome e se cristalizar à frente, vendo-se tão nítida justo naquele instante em que sentiu que desde então sempre sua vida seria um constante morrer.

E começava já a sua morte.

Mas não disse isso; apenas — apenas? — gemeu longamente: “aaai”. E entre paredes apertou o corrimão, parando num breve frenesi, misto de temor e gozo, porque lhe pareceu numa quase transparência ter ouvido uma notável primeira rachadura na casca do ovo.

E teve medo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Não é Tempo de Maçãs

Volta para casa. E o faz tão cabisbaixa, o ombro curvado, os braços cruzados, os dedos roçando os braços, tão cabisbaixa que não se necessita ver seus olhos inchados para se perceber que andou chorando. Porque, e talvez se precise pedir perdão pela obviedade, também o corpo chora. Como chora agora o dela, que neste instante encosta-se em uma esquina, esperando o semáforo ser-lhe favorável, enxugando o rosto, o abaixo dos olhos, lançando à frente a vista perdida, podendo-se ver o avermelhado da carne enlacrimada. Logo escondido quando percebe que estivera parada tempo demais, emolduram-se rostos nas janelas dos carros, as pessoas já estão olhando, então espalma as mãos, levando-as ao rosto, à boca, ao buço, à base do nariz, espalmar de prece-petição. Os cotovelos apoiados no ventre, a boca semi-aberta e o passo largo, que agora já-já o semáforo irá fechar. E é preciso que haja pressa, um carro está buzinando, como pôde ser tão lerda, como pôde ser tão concha no choro emudecido que a tomou. Sempre fora quieta, contida, sem necessidade de ser vista, mas hoje não. Não hoje, por favor!, que transforma-se em pura expansão se tomada de imensa alegria, como pela manhã indo às compras, o prazer lhe saindo pelos poros, pelos dedos, pelas costas, pelos joelhos. Expansão. Os braços em volta dos filhos, dos netos, do esposo, quando o tinha. Sorrisos em esboço para o outro, porque não se é dono da própria face; esta, quando não se está só, é de quem a vê. Ela de rosto ao alto, de braços ao longo do corpo, estendidos como um passeio no parque à sombra de ipês. E pudesse um agora cobri-la, engolindo-a copa acima para nunca mais descer. Que não suporta tanto tremor, e sob a visão de todos! —Dona Vitória, diz alguém, e ela olha para o lado, sem ver, e levanta a mão e acelera o passo. O peito arqueado, contrito, decerto ouvindo sussurros pontudos, de altivez. Esquecidos, talvez, enquanto estivera com a amiga, sorrindo às compras, mas de sorrisos-fachada, os dela, que não se esquece fácil a ignomínia, o egoísmo, a mesquinhez. Não quando deles se sofreu recentemente, podendo-se apenas caiar a face, rosto oblíquo, o queixo quase ao peito, o olhar acima-à-frente, e lábios apertados como o riso em surdina do ser pego em falta. Mero fingir-se, porque o rapaz observou a mão crispada quando ela lhe entregou as notas que tirara da bolsa, ele, claro, atencioso, perguntando se queria alguma sacola, ela indo rápida à saída, guardando na própria bolsa a compra apenas envolta em papel. A amiga, no caixa ao lado, perguntou se não ia comprar mais nada, e ela respondeu que não, e saíram as duas, ainda mais apressadas, talvez por ser incômodo carregar na bolsa um frasco de veneno. A casa da amiga está infestada de ratos. —A minha também, disse Vitória, e comprou do mesmo, certificando-se com o vendedor a respeito da eficácia do produto, que mataria um elefante, fosse dada a ele uma colher. E sorriram as duas, porque elefantes ainda não haviam invadido suas casas, embora talvez dessem menos trabalho, pois como poderiam se ocultar? Sorriram apesar do clichê, esse de mataria até um elefante. Como se usam clichês, o mundo é cheio deles, e talvez porque sem eles a comunicação fosse mais difícil, sua presença permite que haja apenas o reconhecimento de algo, não havendo o espanto diante do novo, do inusitado, o estranhamento. E teriam conversado mais sobre a natureza dos elefantes e dos ratos, isso se Vitória não tivesse puxado o braço da amiga, as filas nos caixas estavam enormes, ficariam em duas delas, talvez uma andasse mais rápido. E foram pagar as compras, deixando para trás o vendedor, que certamente ficou pensando no que preferiria, se um ou outro animal em sua casa. E também nos olhos deles, assunto no qual tocariam se tivessem continuado a conversar, certamente; dizendo também que deveria haver bancos no interior das lojas, para quando quisessem discutir sobre a natureza do olhar, e sobre como se deseja esmagar a cabeça de um rato, quando os olhos saltam do escuro, não porque sejam maus, mas pela pequenez que parece querer esconder algo, como se tentando cerrar uma cortina sobre o que lhe vai dentro, ou como se quisessem de repente aumentar, engolindo quem à sua frente. Diferente da imensidão do outro, que parece se dar espraiado, entregue para ser ferido por uma agulha, ou um prego, ou uma estaca. E eis que ela chega à casa, está abrindo a porta, olha para a sala, com um braço abraça o ventre, leva um dedo aos lábios. Agora já o afasta, desliza o polegar pelos outros dedos, como querendo que se apreendam, a sala é larga, são muitos os móveis, mas parece que os olhos não vêem. Agora eles, junto com o corpo, choram também. E ela há pouco olhava para o lado e levantava o braço e acelerava o passo ao som de seu nome, canhão explodindo em noite de águas e colibris. Há muito pouco ela estava na rua, e agora é em casa que está, sentada na sala, o corpo ao sofá. E decerto viera pelos lados da Matriz, ajoelhando-se à porta, as mãos ao peito, dedos ao pescoço. Ou talvez tenha entrado, ficando aos pés do Coração de Jesus. Talvez. Ou nada, que quando não se está atento a alguém, pode-se perder o ímpar do olhar frente ao primeiro girassol. E isso só porque por um instante virou-se a face para o lado, desatenção. Ela se levanta, vai à cozinha, abre a geladeira, toma do saco de farinha-de-trigo, das fôrmas para empada, e já se sabe que irá, daqui a pouco, acender o forno, preparar o recheio, e as vizinhas irão amar, sempre distribui dos salgados às amigas. A dos ratos é a primeira, decerto já sabe que à noite irá comer empada recheada de palmito fresco, é a melhor, tamanho esmero, já está mais calma, cortando as rodelas, depois fará os cubos. E quando tudo estiver fechado, pingará umas gotas de gema sobre a massa, espalhando-as delicadamente, um rol de cuidados sobre a crosta grosseira, salgada por uma pequena pitada de sal, a neta mais velha, antes de morder a empada, sempre toca os dentes na crosta, levantando com a língua a lâmina dourada, exibindo-a deliciada, logo vai se esfarelar, a avó sorrindo de embevecida. Como lhe agrada fazer dessas iguarias, e hoje nem se diria que as fizesse, bom sinal isso é, acabou-se a agonia. A vontade é o melhor tônico, revigora. Ofensas podem machucar, mas a vontade maquia a mancha. E nunca se diria ser assim tão fácil se recuperar. É claro que agora ela não é maravilhas: sentou-se à mesa, a massa nas fôrmas, apenas seis empadas, nunca fizera tão pouco, não cortou todo o palmito, as tampinhas de massa já estão prontas, sempre as deixa para o final, quando o recheio fica pronto. Deve ser cansaço. Ou tristeza. Saíra logo cedo para ir à loja de roupas. À porta de casa, apertara o braço da vizinha: —Que bom que você vai me ajudar, falou quase febril, uma menina tardia, diria um desconhecido se a visse, as mãos apertando as coxas, a cabeça movendo-se lenta e eterna, parando com o olhar fixo na algarobeira, o nariz tremente, certo que desobstruído, como quando as narinas se alargam e o ar passa quase canforado, espalhando-se pelas paredes, e o pulmão infla-se. —Vamos, falou, a face afogueada. Sorriu. Puxou a amiga. Sempre menina, diria um conhecido se a visse. E no entanto confrangeu-se à loja, após caminhar contente, não quisera tomar ônibus, a manhã estava tão bela, passaram à frente do cemitério, cortaram a praça e seus ciprestes. —Esta praça é estranha, falou a amiga, as árvores têm jeito de morte. —Eu acho linda, disse Vitória, e não é assim feio, é interessante a morte, tem uma beleza... assim, diferente... os enfeites, seus adornos. A guirlanda sobre o mármore, e uns joelhos ao lado. Mas, é lógico, não queria pensar nisso, agora queria viver. A loja não era distante, chegaram logo, as vendedoras aproximaram-se de sorrisos escancarados, solícitas e frívolas. —Podemos ajudar?, perguntaram três a um mesmo tempo. —Ela quer um vestido, disse a amiga, é para o casamento do filho dela. —Ah, o seu filho vai se casar, disse uma das moças, cruzando as mãos à altura do peito, em gesto decorado, vejam que lindo, o filho dela vai se casar. —Sim, é lindo, repetiram as outras em uníssono, coral cansado, sem o brilho de alguns veteranos em representar. —Que cor? Espere; deixa eu adivinhar: Azul. —Vermelho, disse Vitória, pra combinar com meu cabelo. —Mas cabelos brancos... qualquer cor vai bem. —Vou tingir de vermelho-cereja. —Vermelho-cereja?, perguntou a amiga, dizendo que até outro dia ia ser “cendré”. —Envelhece demais. E eu quero estar radiante. Cabeça vermelha, boca vermelha, unhas vermelhas, sapatos vermelhos. E o peito radiante. A mocinha acenou por detrás de uma infinidade de vestidos do outro lado da loja, o braço cansado mas o sorriso firme: —Aqui, queridas. Mostrou-lhes um vestido comprido de mangas longas, gola canoa, uma maravilha. Ela pediu um de alças, pouco abaixo do joelho, decote em V. Algodão fino, forro também. A amiga perguntou se podia ir à loja em frente comprar algo para resolver um probleminha em casa e depois ir à do lado para saber um preço. Ela respondeu que poderiam ir as duas depois, as filas da loja em frente estavam quilométricas, a amiga disse que então iria apenas ver o preço na do lado, não adiantava mesmo tentar dar alguma opinião sobre a roupa, quando encasquetava com algo nada lhe fazia mudar de idéia. A amiga foi à loja vizinha, Vitória levou o vestido ao provador, a mocinha ficou encostada à porta, perguntando se estava tudo bem, se queria mais alguma coisa. O vestido estava ótimo, mas a loja não teria algum de alça mais larga, e não seria possível a moça lhe levar um sutiã de alça fina? Despiu-se e pensou que poderia também comprar uma nova anágua. Estava olhando-se ao espelho, de anágua levantada, examinando uma veia rebelde próxima à virilha, mas vez em quando se mirando nos olhos, contente por estar contente, alimentando-se da própria felicidade, decerto quase não acreditando de quando o filho lhe telefonou dizendo que já havia comprado as passagens e ela iria ao casamento e ele lhe mandaria o dinheiro e queria ela muito bonita. Levou as mãos aos cabelos, acariciou-os para trás, deixou-as no alto da cabeça, cruzadas, olhando para um nada ao lado, os olhos e os lábios repousados no que lhe agradava, quando ouviu a mocinha conversando com alguém: —Essa vaca não toma banho? Se for inventar de provar tudo, a gente vai ter de lavar a loja inteira. Ela fede a azedo. E agora quer provar sutiã?! Assim que a moça começou a falar, Vitória despertou, ainda mantendo os braços no alto, para descê-los aos poucos. Ouviu uns risinhos, viu-se no espelho, olhou os seios, as axilas, cobriu-os, os lábios tremeram, os olhos se umedeceram, passou as mãos na cabeça, tirou um elástico da bolsa, prendeu os cabelos, colocou sua roupa, apoiou-se de costas contra o espelho, olhou para os pés, calçou as sandálias, segurou a bolsa com ambas as mãos. —Senhora, eu já trouxe o vestido e o sutiã, disse a vendedora, sem receber resposta. Senhora, está me ouvindo? Após algum silêncio, Vitória saiu do provador, de cabeça baixa, e disse que precisava chamar a amiga na loja ao lado, ela estava demorando, e precisava da sua opinião. —Tudo bem, senhora, vai estar no balcão, reservado, a senhora não vai me esquecer, não é?Não, ela falou, dando alguns passos, ainda cabisbaixa. Estacou, voltou-se, levantou o olhar, por alguns segundos fixou-o na jovem, ela era bela, morena, grandes olhos negros. Eu nunca vou me esquecer, disse, colocou a bolsa no ombro e saiu. Lenta. Como lenta arruma agora as empadas sobre a mesa, formando com elas uma cruz. Afasta-se, contempla. Os lábios sorriem, mas os olhos estão vidrados, as pálpebras caídas, como caídos estão os braços. Abre a boca de chofre, aspirando forte, criança que se aventurou ir ao fundo do mar, subindo agora à tona em desespero, geralmente são derramadas algumas lágrimas quando se sobrevive a uma situação de perigo. E o que poderia ter sido torna-se tão real quanto a própria realidade, e se sente a agulha que não penetrara sob a unha do pé, e a espora do peixe sob a areia, e o rabo da arraia cortando a panturrilha ou o flanco, e o tentáculo da caravela, e a marca do pneu sobre as costas, e o galho que não furara o olho, e o besouro que não conseguira entrar no ouvido, sendo tirado pelos dedos em desespero. E a arcada do tubarão. Arfa e senta-se frente à mesa, tocando empada a empada, movendo-as. Coloca sobre a fórmica uma bolota de massa. A fórmica é própria para se fazer guloseimas, ganhara a mesa, decerto, do filho mais velho, era festa de São João, todos estavam em casa reunidos e cantando, fora tirada para dançar, sorrira muito, água escorria de seu nariz, os olhos ardiam de fumaça, as bombas estouravam, as vizinhas chamavam à porta, sentavam-se nas cadeiras da calçada, as fogueiras queimavam, as crianças gritavam, os fogos subiam, os fogos estouravam em cores, um vestido tinha uma parte queimada por um busca-pé, um pai aproxima-se gritante, um rapaz encosta os lábios na nuca de uma moça, beija-a, alisa seu vestido de chita, uma moça vira-se para um rapaz que beijara sua nuca e alisara seu vestido de chita, move o rosto querendo sorridente apreender a face daquele que a fita, ele fecha os olhos, ela beija-lhe a boca, coloca as mãos dentro de seu paletó, acaricia-lhe os braços, acaricia-lhe o tronco, aperta-o, ele abre os olhos e não acredita que a beija, porque ela é tão bela e ele sempre a quis e é uma dádiva ter-se o que se deseja, é uma dádiva quando o desejo vem até nós, respondendo com um sim ao nosso apelo. E todos ao lado deveriam afastar-se em felicidade, olhando-os. Ou esquecê-los. Que pode ser terrível pousar o olhar sobre tanta saciedade, sobre tanto desejo satisfeito, virando-se em ódio o que fora puro enlevo. Afastam-se os dois, ela corre até a palhoça, vira-se para ele, gargalha, ele corre até ela, riem, os outros esperam por eles, o amor exige respeito, chegaram, agora arrumam-se todos à entrada, dão-se os braços, formam-se duas filas, entram. Vai começar a quadrilha. —Vai começar a quadrilha, diz Vitória. E afasta-se do filho, atendendo ao chamado das amigas, puxando todos para fora, empurrando quem à frente. A quadrilha. Volta à cozinha, pega a vasilha de pamonhas, sai correndo, chega à calçada, todas batem palmas quando a vêem, ela entrega a uma delas a vasilha, levanta a barra da saia com ambas as mãos, faz uma mesura, dá um giro e senta-se à sua cadeira, já reservada. —A quadrilha, grita o puxador, e a sanfona e o triângulo e a zabumba começam a tocar. —Vá lá em casa, diz Vitória a um menino que acabara de jogar três bombinhas nos pés dos dançarinos, pegue uma garrafa cheia de misturada com mel, traga também os copos descartáveis. E não beba. Vira-se para a amiga ao lado, os músicos amam a misturada, tem pinga com gengibre, cravo, canela, hortelã, cidreira e mel. —E se o menino tomar? Entra correndo à casa e puxa a orelha do garoto, que derrama um copo quase cheio que acabara de levar à boca, molhando toda a mesa, lambuzando a fórmica. Hoje limpa, apenas uns restos de massa sobre ela, nunca mais houve festa. Toma da bolota e emborca as empadas, colocando uma sobre o pedaço de massa. Embaralha-as e tenta adivinhar em qual delas encontra-se a bolinha, mas não faz como quem brinca, e sim como quem adia algo que está preste a começar. Brincadeira que logo cansa. Ela desvira as empadas, re-arruma a cruz, coloca dentro um pouco de recheio, o palmito, um pouco, não o de sempre, e abre sua bolsa, tirando dela o pacote com o veneno, Senhor!, ela está indo colocar veneno nas empadas, vai levá-las às amigas! Coloca pitadas em quatro delas, completa o recheio. Fecha. Pincela com a gema. Requintes para satisfazer a morte. E nesta manhã a sua face à janela e o sol eram da mesma natureza; eram irmãs a leveza do dedo nos lábios frente ao espelho e a pétala do lírio tocando suave o lírio abaixo; ela era as mãos da criança sob a mesa, tocando as pernas com avidez e descortinando-as; ela, nesta manhã, ia encontrar-se com o primeiro namorado; nesta manhã, pela primeira vez ia sozinha à sorveteria; ia à casa de uma amiga para à tarde ficarem à frente do cinema; ela era, no intervalo do colégio, o garoto adolescente tocando pela primeira vez a ponta do dedo no bico do seio da primeira namorada; ela era um buquê de dama-da-noite ainda no galho, pura expansão; um lago, plácido espelho ao sol. Agora trevoso, folhas desmanchando-se, musgo, lodo em madeira partida e partindo-se ao leve toque, escuridão. Violetas caídas ao chão, espessuras de troncos, copas altas, friez, precoce outono, abismo, chumbo em forma de nuvens jogando o negro sobre a terra e acima dela, redoma. E a morte guardada em fôrmas. Leva-se a morte guardada em uma pequena caixa lacrada com fitas, há flores do campo desenhadas, delicadeza a camuflar perigos, um ninho de adagas sob o brando que alguém freqüenta. Leva-se em cortejo a suma indesejada, pela própria morte levada, uma em outra transformada. Morte em morte trocada. Que é perda a mulher, a queda no quintal em noite de chuva, o choro, o grito irrompendo, choram irmanados a face e os céus, os dentes à mostra, a face entregue a miríades de líquido punhal, a um tempo látego e beijo. Único par de mãos a se lhe oferecer, lambendo-lhe o rosto, as lágrimas, afago. Pára à porta, respira fundo, enxuga no vestido o suor do rosto, a cozinha estava quente, toma de coragem e sai. Deverá ir primeiro a qual das vizinhas? Na frente de qual delas descerrará a caixa, as garras de porcelana tocando matemáticas as pontas das fitas? Há restos de esmalte nas unhas, leve rosado, escamas. Vai em direção à casa da amiga que a acompanhara bem cedo, já são duas horas, vê agora o relógio, como o tempo passou rápido, há pouco era manhã. Por que à casa desta, despejar sobre a mais querida o seu rancor? Como pode transformar-se em tamanho ódio um tamanho amor. Derramam seu sangue mais uns inocentes. Mais deles quedam-se ao chão. Nada imprevisível que um morto leve consigo outros mais. Os de perto. Os bem próximos. Estranho entrar sozinho em desconhecidos quintais. Tocar à porta de onde não se conhece o dono. Terrível tal solidão. Ela hesita. Volta para dentro de casa. Vai à cozinha. Abre a bolsa. Remexe-a. Retira o pacote com o veneno. Vai colocar mais um bocado nas empadas, decerto para garantir que ela, viva-morta, assistirá à, de outra espécie, morte das demais. Ela treme. Vai ao quarto. Abre uma gaveta. Retira dela uma caixa de guardados, folhas secas coladas, finos galhos, entrelaçado de ervas cobertas de verniz, é uma caixa enorme, ocupava toda a gaveta, deposita-a sobre o colo, há nela álbuns de fotos, lenços, mangas de roupas, restos de grinalda, luvas, um véu. Dos álbuns, toma de um pesado, em madeira, cordames lacrando-o, desfaz o laço, passa as folhas, são cinza e grossas, entre elas há folhas de seda, fazem barulho ao serem passadas, e logo o silêncio dos dedos sobre as fotografias, emolduradas entre cantoneiras triangulares, nervuras geométricas, são de cor bege, os dedos são de porcelana, há restos de esmalte nas unhas, leve rosado, escamas, uma boneca envilecida, esquecida a um canto, engilhou-se o dorso de suas mãos. Ambas passeiam sobre as imagens, passam-se as folhas grossas, passam-se as de seda, farfalhar e silêncio, silêncio e farfalhar. Repousa o olhar, mais demorado, sobre imagens de crianças. Há quatro nesta folha, aleatoriamente dispostas: numa delas há um garoto num quintal, sobre o ombro do pai, segurando a corda de uma pipa com uma das mãos, o pai posando de homem forte, os braços forçando os bíceps, um sorriso escancarado com a língua de fora, a outra mão do menino está agarrada a seu pescoço, sustentando-se nele; quatro crianças, ao lado de uma senhora, mostram os rostos entre arbustos de papoulas, são três garotas e o menino que na outra imagem está sobre o ombro do pai; uma menina chora sozinha em pé sobre a mesa de centro, segura uma boneca nos braços, aperta-a, os olhos clamam, decerto pedindo para descer, está só, tem um vestido de rendas, um laçarote com estampa de bolas amarrado na cabeça, ao alto um tufo de cabelos, o resto descendo em cachos até quase o ombro, na outra foto todas as garotas usam laçarotes idênticos; a mesma garota, que chorava, agora repousa em uma cadeira de balanço, é de madeira, a palhinha trançada formando o encosto, o assento, agora sorri, as duas outras garotas e o menino estão a seu lado, sentados, o pai e a senhora das papoulas, deve ser a mãe, estão atrás, agachados, as cabeças apoiadas no encosto, um bebê está sobre o colo da menina, ele tem a fralda rasgada, estende uma das mãos, um dedo em riste, como se querendo tocar quem lhe observa. Detém-se sobre esta foto, beija-a, retira-a cuidadosamente de entre as cantoneiras, retira também aquela da garota sozinha sobre a mesa de centro, apertando a boneca contra o coração, a das crianças entre os arbustos. Fecha o álbum. Volta a abri-lo, passa as folhas, farfalhar, silêncio, silêncio, farfalhar, encontra a foto do menino no ombro do pai, retira-a também. Coloca-as em um envelope. Guarda o álbum na caixa, toma de uma sacolinha de pano, coloca nela uma das mãos, mexe-a, procurando por algo, encontra, retira da sacola a mão fechada, coloca-a no bolso da saia, retira-a de dentro vazia, largando ali o que procurara. Põe a sacola na caixa, deposita a caixa na gaveta, fecha-a. Olha para os lados, o sol está forte, ela fecha as cortinas. Vai à cozinha, pega o frasco com o veneno, abre a torneira da pia, derrama dentro dela todo o conteúdo do frasco, que desce rápido, espiralado, leitoso caudal. Lava o frasco, coloca-o na lixeirinha, no fundo, entre o resto do lixo. Toma da caixa com as empadas, toma da bolsa. Mas ela não ia colocar mais do veneno nas empadas? Vai à porta. Respira fundo. Faz o sinal-da-cruz. Morde os lábios. Sai. Cruza a rua, chega à porta da amiga, a que lhe acompanhara às compras, toca a campainha. Olha pela janela, o quarto da amiga está desarrumado, não tivera tempo para colocá-lo em ordem, o de Vitória é sempre limpo, pronto para receber visitas, talvez outros deixem seus quartos desarrumados, porque só têm passado, são sempre um olhar para trás, mas Vitória, ao menos nesta manhã, tinha um futuro, tinha por que arrumar o quarto e a si, e a amiga não iria casar o filho mais novo, onde ela pode estar, que não vem abrir a porta, decerto pensa, aflita, esfregando o polegar contra o indicador. Aflita para vê-la caída ao chão e depois estender-se ao seu lado, contemplando-a em tristeza. E já se podia imaginar que fosse visitá-la, não suportaria estar morta sozinha; mas por que realmente matar as amigas, se ela mesma estava viva, morta apenas em tristeza? De qualquer forma, são previsíveis as pessoas, as que tocam as campainhas à espera do pescoço, da jugular, a porta se abre, surge a amiga, que diz: —Vitória, você estava onde? Só chegou agora?Não. Faz tempo, já; estava na cozinha preparando umas empadas.Ai, empadas... estão onde?—Aqui, diz, mostrando a caixa, quanto cinismo, a amiga preocupada, pois após terem comprado o veneno no mercadinho, Vitória dissera que tinha de resolver uns problemas antes de ir para casa; logo depois, antes de entrar, passaria na casa da amiga, ela lhe acompanharia à cabeleireira, começaria já hoje a tratar dos cabelos, e agora, depois de a amiga demonstrar-lhe preocupação, mostra-lhe a caixa de empadas. —Posso comer uma? Vitória abraça a amiga e lhe diz, sussurrando: —Perdão. Faltou-lhe ser quinta-feira e dar o beijo na face, Judas. —Perdão? Por quê? Não posso comer?!Não, ela diz, são uma encomenda. Vim só pra lhe dar um abraço. E pedir perdão.Mas... por que, Vitória? O que aconteceu? Algum problema?, pergunta, tocando-lhe a testa. Você está suando frio, venha, entre aqui, vou lhe dar alguma coisa, venha. —Não, tenho de ir.Para onde?Tenho de ir, ela diz, e sai rapidamente, ampliando os passos, aperta forte a bolsa sob o braço, segura a caixa com ambas as mãos, o corpo estremece, a cada momento ela torna-se mais tensa. Pára. Tira da bolsa as fotos, olha-as demoradamente, decerto por elas está quase chorando, pois quando se vê uma foto antiga, chora-se. Estranho: de repente, tanto se entende; de repente, tanto se compreende a forma como abraçou a mãe quando foi visitá-la uma noite, após ter encontrado uma foto em que ela dançava num baile ao lado de uma das irmãs; naquele momento, ela entendera. Sim. Se todos se olhassem, e se reconhecessem, seriam amor. Quando se vê uma foto antiga, chora-se. E ela agora explode em águas nos olhos, torrente, mexendo o corpo para a frente, para trás, não sabe o que fazer, percebe-se isso, está pensando em voltar à casa da amiga e servir-lhe agora o sórdido banquete. Guarda as fotos. Enxuga as lágrimas, enxuga o rosto, felizmente tem sempre um lenço na bolsa, deve ser o que lhe ocupa o pensamento. Volta a seu passo, agora mais lento. A amiga comerá deliciada, pensando ser leve iguaria o que levará à boca, a crosta salgada, a fina lâmina trincada entre os dentes, a gema pincelada, rastro polido sobre o áspero delgado da tampa a encobrir miudezas de palmitos e ervas, farinha de trigo, sal, azeite. E entremeados, rancor, tristeza, calafrios, o perigo a esconder-se nas minúcias. A amiga morde e agradece o presente, lavores derretendo-se em sabor, que gostoso, o palmito novíssimo, desfaz-se a um fino toque, delicadez. E logo estremece, anunciando um acesso de tosse, desesperada a agarrar-se nas rosáceas do portão, apoiando-se nele, uma das mãos amainando-se nas pregas da saia, ela resvala, sai do pé uma de suas sandálias, a outra fica sob o corpo, dobram-se suas pernas, que não cedem por completo, pendura-se seu corpo pelos cabelos, alguns cachos se enroscaram nas rosáceas, gemido, terrível visão, nem esperara entrar para experimentar do salgado que recebera de dentro de uma caixa envolta em fitas, há belas gravuras nela estampadas. É certo: Vitória visitará novamente a amiga, tocará a campainha e estenderá a mão, sorridente, e a outra será horror pendurado em fios, o corpo pendendo sob o sol da tarde. Vitória atravessou a rua, passa agora pela casa da amiga, não lhe toca a campainha. Voltará mais tarde? Da vontade ao ato, incham-se estádios, sinuosidade. Esse gosto de manter-se em eterno suspense, cria-se para si mesmo um constante esperar, esse manter-se em suspensão, expectativa sempre, pois quando se chega ao lugar, morre-se, que chegar é sempre morrer, decepção. Rodará o quarteirão, o bairro, a cidade? Decerto a lua tingirá de cores melhores sua mesquinhez. Agora apressa-se, não mais anda como quem espera, tem pressa, está decidida, toma da avenida, como os carros aumentaram na cidade, centenas, milhares, há pessoas nos ônibus, nos táxis, em praças, balé de vestidos e estampas, as vitrines, os manequins, bustos sem cabeça, altas sandálias, cabides, plumas, braços levantados, cabeleiras negras, olhos brilhantes, sorrisos melífluos. —Senhora, aqui, aqui! Vitória estaca, sorri. Vai à moça, é a vendedora, alegre, ela vem com um caderninho nas mãos, há uma caneta atrás de uma das orelhas, coloca o caderninho no bolso do jeans, toma a mão de Vitória, aperta-a, contentíssima: Que bom que a senhora voltou. Guardei o vestido. —Eu disse que não ia me esquecer de você.Foi, a senhora disse. Mas sabe como é, as pessoas dizem sempre a mesma coisa, saem e nunca voltam. Nunca mais a gente vê elas de novo.Não eu, diz Vitória, não eu.Pode vir, diz a jovem. Guardei o vestido muito bem guardado. E o sutiã. Alças finas, não é isso? Lembro muito bem. Vai ficar estupendo. Quando vai tingir os cabelos? Vermelho! Vermelho-cereja, para ficar radiante. Não é isso?Sim.Está vendo como não me esqueci? Vê como me lembrei?Eu também não me esqueci de você. Nunca vou me esquecer.Venha provar.Não. Antes, eu queria conversar um pouco com você. Se puder, é claro, diz Vitória, tocando levemente o braço da jovem, os lábios estremecem. Você sabe, meu filho vai se casar.A gente pode conversar um pouquinho, senhora.Posso me sentar?Sim, ali, a moça aponta, há uma cadeira de madeira em um canto da loja, a seu lado uma mesa com revistas e garrafas, café e chá, dias depois Vitória dará a idéia de o mercadinho fazer o mesmo, um lugar onde se possa sentar e conversar. Abre a bolsa, tira as fotos, mostra-as à moça, ela olha vagarosa, diz que são lindas, ama fotos em preto e branco, pergunta a cor dos laços com bolas, são amarelos com bolas vermelhas, todas as irmãs tinham fitas iguais, era a identificação, tão unidos os irmãos, a praia era a melhor diversão, perdendo apenas para o jardim dos pais, os arbustos de papoulas formando um pequeno labirinto, quando alguma criança se perdia, um adulto caminhava entre as plantas e, de cima, rindo, agachava-se e salvava o infeliz, agora as duas sorriem, a jovem nunca brincou antes em um labirinto, deve ser bom e terrível, a sensação de estar perdida, presa sem saber uma saída, mas há sensações piores, é o que Vitória lhe diz. —Piores?Sim, mas agora eu não quero falar sobre isso, coloca no colo a caixa com as empadas, estava depositada a seu lado, é para a jovem, vai entregar a ela, em breve ela será grito, um cair sobre as pernas, face desfigurada, cabeça batendo no chão. Tome, eu fiz pra você. E antes de entregar-lhe, pede que veja de novo a foto com todos, a garotinha repousa em uma cadeira de balanço, é de madeira, a palhinha trançada formando o encosto, o assento, há sorrisos, as outras garotas e o menino estão a seu lado, sentados, o homem e a mulher estão atrás, agachados, as cabeças apoiadas no encosto, um bebê está sobre o colo da menina, ele tem a fralda rasgada, estende uma das mãos, um dedo em riste, como se querendo tocar quem lhe observa, a moça pergunta quem deles é Vitória, ela pede que adivinhe, a moça diz que é difícil, todos são parecidos, sim, são muito parecidos, e eram muito felizes, ela está no colo, estendendo a mão, o polegar em riste. —Que lindo, senhora, esta foto é linda, a senhora deve guardar com muito cuidado, não é?Sim, com todo cuidado, você não sabe como preciso voltar até aqui de vez em quando, as fotos são guardadas em antigos álbuns, há uns de madeira, folhas grossas, folhas de seda, são de cor bege as cantoneiras, e há música ao se procurarem as fotos, farfalhar e silêncio, silêncio e farfalhar. Mas coma a empada, você deve estar com fome, tanta gente pra atender, e eu aqui tomando seu tempo, eu que nem tenho muito tempo, estou velha, não estou? Coma. E entrega-lhe uma, olhando ávida, os lábios jovens decoram de marrom dourado a crosta da massa, migalhas grudam nos lábios, está uma maravilha, que sabor. Que cálculo, se deveria dizer. Olha para a moça, para sua boca, e deve estar lembrando-se de que seus lábios estão sem cor, não os retocara, não deixara sobre eles os dois riscos retos, não se atém a desenhar as curvas, não há mais curvas, o ângulo superior, a bela depressão, seus lábios não têm mais qualquer nuance, só os dois riscos, grossos, toma do batom, do lápis, do pincel, e, mesmo sem olhar, risca a face, são dois traços paralelos, feitos de riscos sobrepostos, que só um traçado não lhe dá a desejada espessura, a devida, a necessária, os riscos vazam-se-lhe dos lábios, os últimos traços, sobram-lhe abaixo e acima, esses últimos traem que ela não se deteve sobre eles, e tem-se ao redor da boca uma espécie de halo, forma-se um contorno mais claro, ela sorrindo é alegria borrada, inevitável e incalculado palhaço, difere da boca à sua frente, mordendo ávida, sôfrega, um tanto de farelo caindo sobre a roupa, a vida lançando-se desesperada contra si mesma. —Você está mesmo com fome.Estou, diz a moça, limpando os lados dos lábios, sorri, está sujando-se toda, é difícil comer empadas sem se sujar. — Coma mais uma, diz Vitória, e escolhe outra para lhe entregar. A jovem come rápido, levanta o olhar: —A senhora não vai querer? Vou. Olha para seu rosto, toca-lhe a pele, esfrega nela os dedos, o gesto enrijece de repente, a moça assusta-se. Você é bela, é jovem.Imagina, ela diz, tocando a mão de Vitória, percebe-se sua surpresa, com esforço consegue livrar-se das garras, fria porcelana. A senhora também é jovem, e seu filho vai se casar. Ainda é muito jovem.Sim. Claro. Meu filho vai se casar, e eu estou tão contente, que me entristeço, sabe quando uma alegria é tão grande que você se sente pequena diante dela e cai em prantos? Meu filho vai se casar, e eu vou vestir vermelho radiante. Você não gostaria de ir ao casamento? Vá ao casamento. Faça isso; você vai me dar essa alegria. Eu gostei tanto de você. Promete que vai? Quero que sejamos amigas, hein? Amigas, diz, e as palmas de suas mãos alisam ásperas o queixo da moça. —Tenho de ir, senhora. Levanta-se. Vitória puxa-lhe a manga da blusa, traz para perto de seus lábios o ouvido da jovem, fala-lhe baixo: —Claro, desculpe-me, você está trabalhando, e eu aqui lhe atrapalhando. Vai, vai atender outra pessoa, eu espero, não tenho pressa. Eu tenho todo o tempo do mundo. Quero apenas que me prometa que vai ao casamento. Toca seu ombro. Você vai?Vou, senhora, é claro que vou.Obrigada. Agora vá trabalhar, diz, e irrompe em choro, convulsa. A moça preocupa-se. Pode ir trabalhar, minha jovem, não se preocupe. Estou apenas contente. Empurra-a, a moça sai cambaleante, parece temerosa, sequer imagina que daqui a pouco desfalecerá. Vitória continua sentada na cadeira, mais calma, come das outras empadas, esmigalha-as contra a boca, lambe os restos, extasia-se, tamanha frieza, quer assistir com privilégios à queda da outra, tamanha vingança, diafanidade de gestos. Come das empadas, pipocas sobre a perna, sessão de cinema, mas não há enlevo em seu rosto, olha para o longe, não procura a atriz principal, a solista, detém-se nas laterais. Está sentada, a caixa sobre as pernas, leva uma das mãos ao bolso da saia, retira-a, fechada, uma lágrima resvala, morde o lábio inferior, o corpo treme, aperta a mão, a cadeira faz barulho, ouve-se um som mais alto em outro lugar, é a moça, que tropeça, cumpre seu destino o veneno, em tão pouco tempo, força e leveza transmutam-se em uma mulher apoiando o corpo em roupas penduradas em cabides, cede o aparato, ela cai de joelhos, fosse possível ver-se sua face, ver-se-ia o terror. As amigas olham para ela, apontam-na, seguram os próprios ventres no esforço de rir, não perceberam o horrível, vêem apenas uma companheira que tropeça, e riem, indiferença, animalidade. A moça levanta-se, olha para trás, gargalha com as outras, arregala os olhos, assusta-se com algo, é Vitória, que geme, entra em convulsões, sai espuma de sua boca, mas ela não se esforça para, Deus, ela preparou a própria cama, as empadas!, Vitória comeu as envenenadas, eram quatro, dera as outras duas à moça, que se aproxima agora. Grita, leva as mãos à cabeça. Há uma senhora sentada em uma cadeira de balanço, é de madeira, no chão há uma bolsa, uma caixa vazia, fotografias, em uma das mãos um lenço amarelo com bolinhas vermelhas, um homem aproxima-se, é médico, examina-a. Está morta. E agora é preciso chorar, coração em dor. E pedido de perdão, porque em um instante houve o atrevimento de se aproximar de alguém querendo enxergar-lhe o peito, como se lhe fosse isso de direito. Perdão. Perdão, pois se poderia apenas tê-la olhado; não seria pouco, tê-la amado com o olhar, sem perscrutá-la, as circunvoluções do pensamento, o falso direito de ir alguém atrás de ter o que não lhe pertencia e não poderia lhe pertencer, o mistério do outro, que só repousa quando no último sopro, e se acha então que ele deitado no colo é finalmente entregue ao braço de quem imagina que o acolhe, e ele já se foi, que não há possível repouso, só há o corpo, que não sente, e se poderia tocar suas feridas, talvez se devesse tocar-lhe os braços, sim, seria um dever, tocar-lhe os braços, a virilha, o peito, o queixo exangue, todos olhando, embevecidos, admirados porque também deveriam tê-lo feito, saliva, os lábios espumando, ela se transborda, a moça se desespera, decerto lembra-se do que lhe disse pela manhã, pesa-lhe a memória, atirara-lhe dardos, setas sobre uma senhora que pela manhã, felicíssima, viera comprar roupas para o casamento do filho, pintaria os cabelos, ficaria radiante, era só alegria, era um sol a sua face, e atirara-lhe dardos, como pudera, felizmente a senhora não ouvira seus dizeres, zarabatana soprando-lhe no ouvido, felizmente, o que aumenta sua dor, pois morre à sua frente uma inocente, que depois lhe dera palavras tão gentis, gentil senhora, talvez tenha ouvido e esquecido tudo o que ouvira, voluntária missão de paz, voltara à loja, como prometera, e trazendo empadas guardadas em caixa com fitas, tamanho ardor, faltara-lhe o coração, enfraquecera com tanta alegria, e pudesse a moça voltar no tempo, teria dito bem alto, às amigas, a senhora na cabine, que é lindo estar alegríssima, vermelho-cereja, cai-lhe bem, será inesquecível a festa, e iria, se fosse convidada, gostaria de apertar-lhe o braço durante a celebração, beijar-lhe o rosto, o ombro, apoiar-se em seu peito, olhando-a acima de si, uma criança tocando a mão da avó, calma e sabedoria, diria isso se pudesse, mas nunca mais verá seu rosto sorrindo, ela não estará radiante no casamento do filho, talvez não haja casamento, pensa a moça, e talvez lhe ocupe a mente a foto dos arbustos, da criança na cadeira, no colo, estendendo a mão, lembra-se de que fora criança, um dia pretenderá ir às bodas do filho, vermelho-cereja, é claro que está pensando que tudo. Não, não é claro. Nada é claro. E agora seria preciso deter-se sobre esta, olhando-a, sem querer apreendê-la, deixá-la a sós, afastando-se, ela entre cabides, e roupas, burburinho, pessoas correndo, várias rodeiam a cadeira de balanço, um homem jovem fura o cerco, leva consigo uma senhora nos braços, há choros, aproximam-se da moça, deve-se agora fechar a lente, silenciar, não se incorrer em tentativas de lhe escarafunchar, silêncio, silêncio, não se deve sequer olhar para ela, mas volver-se para dentro de si, ou fechar-se os olhos, dormir, é preciso adormecer, que um olhar já é mácula, não se consegue observar sem uma mínima contaminação, cortem-se os braços, as pernas, retirem-se os olhos, a língua, tapem-se os ouvidos, seja-se pedra, mas as pedras são passíveis ao toque, pode-se tropeçar nelas, os olhos estão fechados. Houve um rápido silêncio, um quase impossível silêncio, é difícil se conter, e então vê-se a moça, ela está tão próxima, levanta a mão, seu dorso à boca, morde um dos dedos, chora, olha para o chão, há uma caixa caída, migalhas, uma caneta, aperta o ventre, difícil vê-la e não se imbuir de lhe investigar a alma, retesa-se, a face transida, a beleza embaralhada, uma amiga abraça-a, diz-lhe para se acalmar, afaga-lhe os cabelos, a nuca, beija-lhe a testa, os lados, baixa-lhe a cabeça, apoiando-a no ombro, há burburinho na loja, pessoas aproximam-se, amontoam-se à entrada, ela levanta o olhar, paralisa-se, parece ver uma criança emergindo da massa amedrontada, há papoulas no vestido verde, tem no cabelo um laçarote amarelo de bolinhas vermelhas, leva à boca uma maçã enlambuzada em mel, lambe-a. Sorri.